sábado, 8 de março de 2014

Mais um dia

written by Larissa Rainey at 01:12 2 comentários.

obg Malu <3

Uma flor, um bombom, um estereótipo reforçado pela milésima vez. Uma hipocrisia vestida de homenagem. Um reverenciamento do arquétipo inatingível. É o que nos oferecem a cada oito de março.
Depois de recebida a flor, o bombom, o cartãozinho, nos sobram as dificuldades diárias. Mensais. Anuais. Muito cara a taxa de anuidade que se paga por ser mulher - e não dá para cancelar o cartão assim, de uma hora pra outra.
Que levante a mão a mulher que anda tranquila pelas ruas de sua cidade à noite. Que levante a mão aquela que não tem uma história de assédio nas ruas. Que levante a mão aquela que nunca se sentiu intimidada por algum homem: seja o pai, o irmão, o avô, o amigo, o namorado, o chefe. Para ser sincera, não espero mãos levantadas ao fim deste parágrafo.
Ser mulher é ouvir uma série de alarmes, desde a mais tenra idade. Crescemos ouvindo que existe um padrão e ele deve ser obedecido. Precisamos escolher entre vários tons de rosa, bonecas que muitas vezes não nos representam, precisamos ser silenciadas, caladas, porque "menina é mais quietinha". Temos que ser dóceis, afáveis, meigas. Aguentar tudo sempre com um sorriso no rosto. Acham que somos vasos decorativos, encostados numa prateleira inalcançável. Uma flor para um vaso. Entende?
Dizem que mulheres são indecifráveis. Que o nosso não é um sim, que não nos expressamos de acordo com o que pensamos. Nossas negações são o estopim de uma longa discussão, em que tentam nos convencer a fazer o que nem sempre queremos. Muitas vezes, nos vencem pelo cansaço. 
"Mas por que não? Me diz, eu quero saber. Conta, vai. Mas por que não? Vai ser bom. A gente se dá tão bem! Eu sei que você quer."
A cada século se criam homens que não respeitam mulheres. Não respeitam nosso espaço físico nem mental. Precisamos lutar para conseguir escolher representantes políticos. Precisamos insistir por salários melhores e iguais aos dos colegas homens. Não podemos exercer nossa liberdade de vestir o que queremos por medo do que pode nos acontecer. Não podemos andar na rua à noite sem ter medo de qualquer pessoa que passe perto de nós. Não podemos ir ao trabalho às oito da manhã sem sermos assediadas na rua. 
Mulheres morrem nas mãos de seus  maridos, namorados, amantes. Mulheres apanham desses companheiros, vivem com medo, sem dinheiro para ir embora de casa. Mulheres morrem fazendo abortos ilegais porque não nos dão o direito de fazer esse procedimento de maneira segura. Mulheres morrem no parto, em condições precárias. Mulheres são estupradas, abusadas física e psicologicamente. E ainda sim, colocam a culpa em nós. Se apanham do namorado, é porque aprontaram. Não consegue sair de um relacionamento abusivo? É trouxa, idiota, apanha porque quer. Morreu fazendo aborto? Bem feito! Morreu no parto? Bem feito! Abre as pernas, é isso que você ganha. Foi estuprada? A culpa é das suas roupas, do seu comportamento, dos lugares que você frequenta. 
O sistema monetiza nossos corpos e nos culpa quando o pior acontece. Nos bombardeiam com imagens falsas de perfeição e quando mulheres morrem ao tentar atingi-los, nos culpam. Nos oferecem salários menores e se  não podemos ser financeiramente independentes de nossos parceiros, nos culpam também. Homens não usam camisinha, e se a minha pílula falhar, a culpa vai ser minha. 
Se eu me visto de maneira a não deixar nada mostrar, sou pudica e pouco atraente. Se me visto com roupas que revelem meu corpo, sou puta e mereço ser humilhada.
Colocam em nossas cabeças que nossa aparência deve agradar aos homens - e se seguimos a cartilha, nos categorizam como fúteis e inúteis. Gostar de maquiagem é ridículo, queremos um look mais natural, menos falso... nossa, você não usa maquiagem? Que absurdo! Por isso fica feia desse jeito! 
Se a vizinha faz sexo e grava, o mundo inteiro fica sabendo. Porque o namorado idiota vazou o vídeo, e ninguém culpa o namorado idiota. Somos nós, mulheres, as expostas. Somos nós,  mulheres, que vamos para a fogueira pública. Porque fizemos sexo, porque registramos esse fato, como se sexo fosse a coisa mais alienígena do mundo. Vende-se tanto o sexo, promove-se tanto o sexo, por que vídeos assim ainda causam tanta comoção? Você lembra o nome do cara que vazou o vídeo da Paris Hilton? Provavelmente não - eu mesma não lembro - mas todo mundo sabe que ela tem uma sextape. Colocam um cone da vergonha em nossas atividades sexuais, até que sair na rua se torne impraticável. Nossa intimidade é exposta e mais uma vez a culpa é sempre nossa.
E você nos dá uma flor, um bombom, um cartão cor-de-rosa e acha que está nos homenageando. 
Não queremos homenagem por ter que suportar todas as merdas que enfrentamos.
Não queremos uma flor para fingir que tudo está bem.
O que é uma flor quando se está no tiroteio todo dia?
Eu quero respeito. Quero pegar um ônibus e me sentar ao lado de um estranho com a certeza de que ele não vai abrir as calças do meu lado. Quero voltar do trabalho à noite sem me assustar com cada sombra. Quero que minhas amigas sejam respeitadas em suas diversas maneiras de ser, quero que as mulheres negras não sofram a horrível combinação do machismo com racismo, que não tenhamos medo de explorar nossa sexualidade em  suas diversas formas, que as  pessoas sejam respeitadas de acordo com suas identidades de gênero, que a mulher pobre consiga um trabalho digno para se separar do marido abusivo. Quero que os garotos saibam que as garotas NÃO SÃO SUAS PROPRIEDADES, que a família não ache fofo que seu filho beija uma menina da sua sala à força, quero que parem de ensinar aos meninos que se ele gosta de uma menina deve diminuí-la, persegui-la. Quero que entendam que o meu NÃO significa NÃO, e ele não tem que ser discutido se estamos falando do MEU corpo. Quero saber que pessoas trans* tenham oportunidades dignas na vida, sem serem humilhadas, ridicularizadas, violentadas. Quero que parem de ensinar às meninas que elas precisam ser agradáveis aos olhos dos homens, que o casamento é a única maneira de ser feliz. Quero que minha filha possa experimentar com o próprio visual sem represálias da sociedade, sem ditar o que é "de menino e de menina". Quero que meu filho possa brincar de boneca e exercitar sua imaginação sem se sentir pressionado. Quero usar a roupa que me deixa segura e confiante, sem medo de reações violentas. Quero que minhas amigas não se sintam invadidas nem desrespeitadas por estranhos em lugares públicos, quero que elas não sofram com ciúmes e possessividade.
Se você não pode me dar isso, não precisa me dar flores. Se eu quiser decorar meu quarto, pode deixar que eu mesma as comprarei.


{Espero que tenham gostado do layout novo do blog.  Hehe.}

 

Larissa Rainey Copyright © 2012 Design by Antonia Sundrani Vinte e poucos